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Não faz sentido menosprezar novelas e gostar de Star Wars

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Que a sociedade brasileira sofre de um terrível complexo de vira-lata, isso todos já sabem. Graças à mentalidade de colônia da qual o país jamais conseguiu se livrar (nem mesmo com a declaração de sua independência), o brasileiro tem mania de falar mal de Carnaval, de samba, de pagode, de MPB, de funk carioca, dos filmes nacionais que (não) vê, das praias, dos pontos turísticos, de quem organiza um churrasco regado a cerveja para ver futebol, etc, etc, etc – e o faz enquanto vangloria qualquer coisa que venha da Europa ou dos Estados Unidos. Claro que, com a teledramaturgia, não poderia ser diferente: embora façam parte de nosso imaginário popular há décadas e de forma inquestionável, as novelas continuam sendo chamadas de “lixo cultural”, “enlatados industriais” e/ou “subprodutos” por um monte de brasileiros por aí.

Pois bem: se estas alegações são corretas, é outra história (e meu objetivo com este texto não é defender as telenovelas). O que acho irônico, no entanto, é que praticamente todos aqueles que vivem vociferando estas coisas nas redes sociais são exatamente os mesmos que dedicam a maior parte de seu tempo a verem, elogiarem e discutirem as produções também industriais realizadas, afinal, pela superpotência mais imperialista do mundo (Tio Sam mandou um abraço). Em outras palavras: é curioso que a comunidade nerd/geek insista em tratar Star Wars e os filmes da Marvel como se fossem o Santo Graal, um exemplo de como o entretenimento dos Estados Unidos é infinitamente melhor e mais desenvolvido que o nosso, enquanto acusam as novelas brasileiras de fazerem tudo aquilo que as franquias que tanto idolatram fazem da mesma forma.

E digo isso como alguém que raramente vê novelas e que gosta (mesmo que moderadamente) de boa parte dos filmes de Star Wars e da Marvel. Quando criança, graças aos avós e tios que quase sempre deixavam a tevê ligada na Globo, acabava assistindo e frequentemente me envolvendo com um monte de obras, de O Beijo do Vampiro até A Viagem (que já reprisou umas 15 vezes), passando por O Rei do Gado, O Clone, Chocolate com Pimenta, Mulheres Apaixonadas, Senhora do Destino, América, Páginas da Vida, Belíssima e Cabocla até chegar, é claro, nas minhas preferidas: A Favorita e Avenida Brasil (ambas de João Emanuel Carneiro). Depois, porém, acabei perdendo o hábito de ver tevê – e, para falar a verdade, antes do fim de Amor de Mãe na semana passada, a última vez que fiquei sabendo (nem que fosse por alto) do que rolava em uma novela foi… naquela do Félix, Amor à Vida (sim, o nome me fugiu e tive que pesquisá-lo no Google). Recentemente, até cheguei a dar uma olhada na icônica Vale Tudo (considerada por muitos a melhor novela que a teledramaturgia brasileira já produziu) através do Canal Viva, mas não a ponto de reativar o hábito.

A vilã Odete Roitman (Beatriz Segall) do super sucesso Vale Tudo.

Dito isso, o assunto em si (a História da teledramaturgia nacional) é de meu interesse – e não sou cínico a ponto de negar que as novelas são, por si só, parte integral de nossa cultura, não sendo à toa que, digamos, 11 a cada 10 brasileiros tenham (como eu) crescido sendo alimentados direta ou indiretamente pelas tramas da Globo que seus pais, avós, tios, etc viam na tevê. (Aliás, tenho o desejo de pegar para ver Vale Tudo, Roque Santeiro, Tieta, Saramandaia, Escrava Isaura, O Bem-Amado e um monte de outras obras em algum momento da minha vida. É bom ampliar o repertório, não?) Não adianta: por mais que se evite, é impossível crescer no Brasil e nunca ter tido um único contato que fosse com as telenovelas; afinal, elas estão em tudo quanto é lugar.

Em outras palavras: telenovela é cultura de massa. Engana-se quem acha que o público-alvo destas produções se restringe ao estereótipo das donas de casa; a teledramaturgia é destinada a literalmente qualquer pessoa que encontre-se na frente de uma tevê no instante em que a novela é exibida. Sim, há tramas que tentam dialogar com um recorte mais específico da audiência, mas o objetivo delas, ainda assim, é sempre ganhar o maior número possível de telespectadores, independente de gênero, faixa etária ou classe socioeconômica (e, uma vez que conseguem, as novelas passam a funcionar como uma máquina de engenharia social – como tudo que a Globo faz). Isso explica por que as narrativas das telenovelas costumam ser tão formulaicas, cheias de reviravoltas absurdas, similares umas às outras e mastigadas ao máximo possível através de diálogos que abusam de exposição: o objetivo é atrair a atenção do espectador, manter o interesse deste e não deixá-lo perdido ou confuso em momento algum. É um entretenimento fácil, afinal.

Roque Santeiro, a novela de maior audiência da História da TV brasileira.

Neste sentido, é importante destacar dois fenômenos que obviamente fazem parte do DNA da telenovela: o primeiro deles é o melodrama, que, originado no Teatro e depois incorporado pelo Cinema (quando este passou a explorar o potencial que tinha para contar histórias), tinha como objetivo criar no espectador “uma identificação fácil”, “uma catarse barata” e uma comoção que dependia menos do texto e mais de “grandes reforços de efeitos cênicos”, como aponta Patrice Pavis no Dicionário de Teatro ao definir o gênero como “a forma paródica, sem o saber, da tragédia clássica”. Para isso, o melodrama girava em torno de personagens distinguidos de forma maniqueísta entre bons e maus, sem espaço para ambiguidades ou nuances – e o fato de representar a ideologia da burguesia pós-Revolução Francesa (no que Pavis chama de “traição” à classe que mais o consumia: o povo) é algo que as novelas da Globo herdaram ao costumarem girar em torno de famílias ricas e que moram em Copacabana, Leblon, Ipanema, etc (por isso, aliás, que Avenida Brasil foi um sucesso tão grande: porque saiu deste eixo e foi direto para o subúrbio carioca enfocar a “classe C” em ascensão na época).

O segundo fenômeno que serviu de inspiração direta para as telenovelas foi, obviamente, o dos folhetins, que eram histórias publicadas de forma periódica e em sequência, como episódios de uma longa jornada, dentro de jornais e revistas na França no início do século 19. Buscando retratar a miséria da sociedade francesa daquele período, os folhetins criavam, no processo, arcos dramáticos e tipos de personagens que mais tarde viriam a se tornar clichês: o casal de almas gêmeas, os amores impossíveis, os irmãos que não sabiam que eram irmãos, os vilões que bolavam planos absurdos, as reviravoltas, as intrigas, os mistérios, etc. (A propósito: você já leu um artigo ou uma notícia que se referia às novelas da Globo como “folhetins” e ficou sem entender o porquê da denominação? Taí a resposta!)

Como já deu para perceber, as novelas têm uma proposta muito específica, uma formulinha específica que visa atingir as massas e que se baseia em tradições culturais igualmente popularescas. Claro que, em maior ou menor grau, isto acaba se tornando um problema: uma novela não pode fugir muito de sua estrutura básica porque, se não, ela “deixa de ser novela”. Não dá para cobrar de um folhetim que este tente se espelhar, por exemplo, no formato das séries norte-americanas, pois elas são algo completamente diferente.

O que nos traz, finalmente, ao título deste texto: não faz o menor sentido dizer que novelas são “lixo cultural” ou “subprodutos enlatados” e, ao mesmo tempo, tratar uma franquia como Star Wars como se esta fosse algo elevado, sagrado. Uma coisa é não gostar de novelas e gostar da saga criada por George Lucas (até aí, ok); outra é desrespeitar o conceito das primeiras e ignorar os vários e óbvios elementos que um e outro têm em comum.

Star Wars: um folhetim melodramático dos bons.

Para começo de conversa, é preciso entender que Star Wars é, antes de tudo, cultura de massa; uma obra que tem como objetivo não se fechar em um nicho específico, mas atingir o maior número possível de espectadores do gênero, da idade ou da classe social que for. Sim, podemos enxergar sei lá quantos subtextos políticos ou criar sei lá quantas dissertações a respeito da série, mas isto, ao contrário do que muitos pensam, não diminui seu caráter popularesco – ou você acredita mesmo que quatro dos últimos cinco capítulos da saga bateram a marca de US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais à toa?

Assim, é apenas natural que, do ponto de vista narrativo, a criação de George Lucas divida com as telenovelas as mesmas influências melodramáticas e folhetinescas – afinal, o objetivo de ambas é o mesmo: agradar ao povo. O melodrama, por exemplo, está todo em Star Wars: as emoções e as intenções de cada personagem são comunicadas para o espectador de forma direta ao ponto, buscando uma catarse fácil; o Bem e o Mal são muito bem delimitados entre os Jedi e os Sith, entre os rebeldes e o Império (numa leitura intencionalmente maniqueísta); uma personagem pode muito bem morrer porque “Perdeu a vontade de viver”; etc. Já a parte folhetinesca pode ser observada não só no simples fato de Star Wars ser uma longa saga dividida em vários “Episódios”, mas também nas histórias contadas em cada um deles: o herói descobre que o vilão é seu pai (numa coincidência absurda do destino); a quase namorada do herói logo se revela sua irmã (consultar parênteses anteriores); as ressurreições improváveis de certos personagens que pareciam não ter mais volta; etc; etc; etc.

Percebem o que quero dizer? Percebem como Star Wars pode perfeitamente ser chamado de “novelesco”?

“Ah, mas os diálogos de novela são muito teatrais”. Porque “Eu sinto um grande distúrbio na Força, como se milhões de vozes gritassem de terror e subitamente se silenciassem” não é nem um pouco, né? (E não que isso seja um problema, neste caso.)

Por último, há o hábito das telenovelas seguirem uma abordagem estética rígida, pré-estabelecida e que raramente muda; sempre com a mesma mise-en-scène, mesma montagem, mesmos tipos de atuação, mesmas batidas narrativas, etc – porque, se tentar mudar, já “deixa de ser novela”. Ora, os “Episódios” de Star Wars também não seguem uma abordagem estética rígida, pré-estabelecida e que raramente muda, com todas as tradições estilísticas que se mantêm desde o original de 1977 (os letreiros iniciais; as transições em cortinas; a trilha de John Williams – que, mesmo quando não é composta por ele, tenta emular seu estilo particular –; os tipos de personagens/conflitos; etc)? A resposta: não, porque qualquer mínima mudança que façam (por mais brilhante que seja) levará boa parte do fandom a dizer “Isso não é Star Wars de verdade”.

Sejamos francos: você consegue imaginar um Star Wars que, em termos estéticos e de linguagem, seja radicalmente diferente do que vimos em todos os capítulos da série? Ok, Rogue One e Han Solo abrem mão de algumas convenções estilísticas (os letreiros; as transições; etc), mas, ainda assim, você acha mesmo que são obras completamente distantes do habitual?

Este é o ponto. Não estou dizendo que Star Wars é ruim, que seu maniqueísmo seja um problema ou que sua estética burocrática me incomode. Apenas não vejo sentido em organizar/frequentar um evento em homenagem à série (como a JediCon) e, ao mesmo tempo, chamar a teledramaturgia brasileira de “lixo cultural” ou “subproduto industrial”.

E sabe do que mais? Que venha a CarminhaCon. Eu vou de Leleco.

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