Há uma razão clara por que Hollywood nunca conseguiu – nem conseguirá – produzir um filme sobre Godzilla que evoque o terror e o impacto da criatura com a mesma eficácia que os japoneses que o criaram: concebido como uma alegoria explícita ao trauma daquele povo depois dos bombardeios a Hiroshima e Nagasaki (um dos maiores crimes de guerra da História), o lagartão da Toho é, desde o Gojira original de 1954, uma materialização das dores e tragédias que o Japão carregará consigo até o fim dos dias e que será ressignificado a partir de sua própria cultura. Não dá para esperar, portanto, que o polo cinematográfico dos Estados Unidos – ou seja: justamente do lado que lançou as bombas atômicas – terá a sensibilidade para tratar de um símbolo como Godzilla com a mesma precisão histórica que os japoneses (algo que discuti brevemente em meu texto sobre Oppenheimer, no qual defendi que a decisão de Christopher Nolan de não reencenar os ataques a Hiroshima e Nagasaki era a melhor possível).
Tomemos, como exemplo, este Godzilla Minus One: 33º capítulo da franquia produzida pela Toho (37º, se considerarmos as adaptações norte-americanas), o longa dirigido por Takashi Yamazaki encara as várias destruições causadas por Godzilla não como algo “divertido” ou “empolgante”, mas como passagens simultaneamente sombrias, assustadoras e… tristes – uma decisão que funciona por evocar de imediato a mesma atmosfera sufocante que tanto enriqueceu o filme de 1954 e, com isso, incutir na criatura todo o peso histórico do contexto pós-guerra que a motivou. Assim, cada morte provocada por Godzilla (seja ao ser pisoteada por este, seja ao ser desintegrada por seu raio atômico) carrega consigo um impacto particular, representando uma tragédia à parte em vez de soar como mais um figurante sumindo em meio ao caos. Da mesma forma, quando os prédios e monumentos atacados pelo monstro vêm abaixo, os personagens ao redor reagem com a dor de quem está presenciando o colapso dos maiores patrimônios culturais de sua nação, com seus significados e tradições de longa data chegando a um trágico fim (ao descrever a devastação do Teatro Nipon, um repórter diz: “… um amado ícone do nosso povo, está desmoronando diante de nossos próprios olhos! Ginza sobreviveu a ataques aéreos, mas este monstro a reduziu a escombros!”).
Por sinal, é interessante perceber como a imaginação visual do diretor Takashi Yamazaki ao criar sequências de destruição elaboradas demonstram um talento que, no futuro, ele pode vir a empregar em produções dos mais diversos tipos: ao enfocar o disparo do raio atômico do Godzilla, por exemplo, o cineasta constrói uma antecipação àquele momento ao passear com a câmera pela cauda do monstro, mostrando cada uma de suas barbatanas brotando violentamente e se iluminando aos poucos, até chegar à sua boca e culminar na rajada em si – e a devastação causada por esta, por sua vez, é antecedida por uma pausa a fim de tornar todo o impacto do que vem depois (a obliteração dos prédios e dos cidadãos ali perto) ainda maior. Num filme de super-herói (ou, digamos, numa adaptação de Dragon Ball), esta atenção que Yamazaki dá a detalhes da ação e/ou dos “poderes” dos personagens serviria facilmente para tornar suas batalhas visualmente criativas e, por consequência, empolgantes (ou, em bom português, “legais”); numa obra trágica e melancólica como Godzilla Minus One, estas decisões mostram-se eficazes justamente por ajudarem a escancarar o horror e a calamidade representadas pela criatura-título.
Neste sentido, ajuda bastante o fato de o Godzilla se apresentar aqui como uma figura genuinamente apavorante, de um jeito que as versões americanas do personagem jamais chegaram perto de ser (nem quando tentavam). Com olhar intenso e bem-definido (daqueles que fitam profundamente e, por isso mesmo, passam a intimidar), uma boca que parece sempre moída/ensanguentada e um corpo cuja textura parece composta pela carne de seres já mortos, a criatura de Godzilla Minus One desperta não só pânico, mas mal-estar sempre que aparece (só não supera, neste quesito, a fera de Shin Godzilla, que me causou tanto desconforto que eu mal conseguia olhá-lo). Não é à toa que um dos momentos mais apavorantes – e, portanto, memoráveis – do filme é aquele que traz os heróis sendo perseguidos por Godzilla em alto mar e que, ao trazer ambos se locomovendo em baixíssima velocidade, obriga os personagens a encararem incessantemente o monstro enquanto tentam fugir dele (algo que ajuda a sequência inteira a parecer saída de um pesadelo). Além disso, os efeitos digitais empregados para criar Godzilla e a destruição por este causada impressionam pelo polimento, pela atenção aos mínimos detalhes e pela sensação de peso físico que trazem, estabelecendo um curioso contraponto, contudo, à forma com que o lagartão anda e se move, que busca sempre remeter às suas versões clássicas ao mostrá-lo caminhando sempre ereto, travado e de modo lentíssimo.
Pois ao se aproveitar deste equilíbrio entre o clássico e o moderno, entre alusões ao passado da franquia e constantes tentativas de atualizá-la, Godzilla Minus One só reforça como a sombra do pesadelo de 1945 (tão presente no original de 1954) continua a ecoar até hoje e seguirá viva ad aeternum – e só a decisão de situar a trama especificamente no período da Segunda Guerra já acentua a conexão entre a alegoria (o Godzilla em si) e seu significado (o contexto histórico que o motivou). Por outro lado, isso não impede o filme de ressignificar certos significantes a fim de buscar, ao menos, um caminho que ajude a cicatrizar tais feridas históricas e a melhor conviver com estas – não é à toa, em particular, que o protagonista da obra seja um ex-kamikaze que amarga a culpa por não ter se sacrificado (um arco dramático ambicioso que jamais veríamos num Godzilla norte-americano) e que encontra, na missão de destruir o monstro, uma chance de também se redimir.
Que Godzilla continue vivo depois de tantas tentativas de abatê-lo é algo que reitera sua capacidade de manter o trauma do povo japonês bem presente em seu imaginário. Que os personagens humanos de Godzilla Minus One sobrevivam a toda a catástrofe que presenciaram, em compensação, é um atestado não só de sua resiliência, mas de sua capacidade de manter viva a memória dos que se foram.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: