Que Ridley Scott é um cineasta absurdamente irregular, acho que não é surpresa para ninguém. Sua capacidade de conceber uma obra-prima que entrará para a história do Cinema (Alien – O Oitavo Passageiro, Blade Runner, Thelma & Louise) e uma bomba de proporções homéricas (Robin Hood, O Conselheiro do Crime, Alien: Covenant) é realmente notável. Dito isso, ainda assim é decepcionante ver Scott tendo a oportunidade de comandar um projeto sobre uma das figuras mais megalomaníacas (e, por que não?, interessantes) da História moderna apenas para resultar num longa com carinha de telefilme feito a toque de caixa para o History Channel. Isso fica claro logo na primeira sequência de batalha que ocorre em Napoleão, que é conduzida de forma anêmica: basicamente, ela se resume um close aqui, um plano fechadíssimo ali e um plano geral do campo de batalha acolá, se alternando numa montagem que carece de intensidade ou dinamismo.
E, se isso poderia funcionar caso a intenção de Ridley Scott claramente fosse a de desprezar a escala daqueles conflitos em prol das reações intimistas de Napoleão perante eles, na prática… não, a “proposta” do diretor parece ser a de retratar aquelas batalhas como eventos de fato grandiosos – mas estes são registrados de forma tão mecânica e pouco imaginativa que acabam soando “pequenos”. Para falar a verdade, o único momento em que as batalhas de Napoleão conseguem provocar alguma sensação que não seja a pura monotonia é a sequência no lago congelado, que é enfocada por Scott como uma verdadeira tragédia, como um pesadelo que deixa bem claro como o personagem-título é não só um exímio estrategista, mas também um carrasco sádico como poucos.
Aqui, neste momento, alguém pode contra-argumentar (com certa razão, não vou negar) que o objetivo de Napoleão não é o de retratar a grandiosidade de seu biografado, mas, sim, o de explorar os aspectos íntimos e minimalistas de sua persona a fim de mostrar, através dos pequenos detalhes, quem era o ser humano por trás do mito/monstro.
Mas aí, me sinto obrigado a responder com uma pergunta: é? Porque, sinceramente, a abordagem de Ridley Scott e do roteiro de David Scarpa me parece tão destrambelhada (entre o micro e o macro, entre qual Napoleão será retratado, entre qual faceta será o norte da narrativa) que não consigo cravar/enxergar uma proposta geral no projeto como um todo. E este, para mim, é o grande problema do Napoleão de Ridley Scott: afinal, sobre o que é o filme e qual é o seu enfoque? É sobre o grande – e, de novo, megalomaníaco – estrategista que tanto impactou a Europa entre o fim do século 18 e o início do 19? Ou é sobre a relação conturbada, mas emocionalmente muito cara a Napoleão, entre ele e Joséphine?
Na tentativa de tratar ambos os enfoques como o centro de uma única narrativa, o filme acaba não conseguindo ser nem uma coisa, nem outra, falhando em trazer dimensão ou profundidade a qualquer uma das duas. Nesse sentido, muito me admira o trabalho de Vanessa Kirby, que faz o possível para imprimir intensidade e peso dramático a Joséphine – e, se no papel a personagem parece oscilar bruscamente de uma cena à outra, na prática Kirby se sai razoavelmente bem ao tentar amarrar uma ponta à outra e, com isso, fazer Joséphine soar multifacetada em vez de inconsistente. Infelizmente, nem isso é o suficiente para salvar todo o arco da relação entre os dois, já que, sempre que o filme parece prestes a se aprofundar nos conflitos do casal e nos impactos duradouros que cada um provoca em ambos, Ridley Scott decide subitamente cortar para alguma outra prioridade narrativa que resolveu ter de última hora – e, assim, quando aparece um letreiro no final dizendo que as últimas palavras de Napoleão foram “França, o exército, chefe do exército, Joséphine“, tal revelação carece do impacto que julgava que tivesse porque o filme em si não construiu bem a escalada até ela.
No meio dessa bagunça toda, o que resta a Joaquin Phoenix é fechar a cara e atravessar praticamente todos os momentos de Napoleão no filme com o mesmíssimo semblante, na esperança de que, em alguma hora, isso acertará em alguma coisa (ou terá a ver com o que o personagem pede em alguma ocasião). Sim, aqui e ali Phoenix ilustra bem a humanidade do biografado ao exemplificar seu medo e seu pânico diante de algumas situações mais graves, mas… estes instantes são pontuais demais para criarem um contraste com a frieza do restante da projeção e, assim, resultarem numa composição multifacetada e/ou complexa. Aliás, a impressão que fica é a de um personagem desenvolvido ao longo de todo um arco mais longo que, no fim das contas, terminou retalhado numa montagem apressada que deixou, de última hora e de forma destrambelhada, um monte de coisa fora.
Se bem que, justiça seja feita, o filme inteiro gera essa impressão – e a correria com que a narrativa passa de um evento histórico a outro é tão gritante que se esquece de construir, com um mínimo de coesão, as circunstâncias que levaram um a outro, soando como um resumão de História que passa rapidinho por vários subtópicos da Wikipédia sem registrar minimamente o que está escrito neles (uma sensação que é acentuada pelo uso constante de legendas que descrevem superficialmente os dados de cada episódio histórico para de evitar a fadiga de… desenvolvê-los de fato). E, sinceramente, eu não acho que isso justifique o fato de todo o filme (dos momentos mais grandiosos aos mais introspectivos) ser uniformemente desinteressante em termos visuais/de estilo – e, se a intenção ao mergulhar todas as cenas numa paleta excessivamente cinzenta (que chapa as cores de tudo que vemos em cena) era a de escancarar sua “seriedade”, na prática o único efeito que se conquista é um tédio visual que não dialoga com qualquer outro aspecto da narrativa.
Mas, pelo menos, Ridley Scott já anunciou que esta versão de 157 minutos não é a edição definitiva do longa e que já, já chegará na Apple TV+ um corte de quatro horas para suprir as frustrações de quem foi assistir a Napoleão nos cinemas. Ou seja: Scott, com todo o poder e liberdade artística que sua carreira premiadíssima de quase 50 anos lhe trouxe, decidiu lançar nas telonas o que julgava ser uma versão pior de sua obra.
Ah, se tem uma coisa que eu mal posso esperar para fazer, depois de pagar o valor inteiro de um ingresso de cinema e ser soterrado com duas horas e meia de aborrecimento, é rever este filme numa versão com 90 minutos a mais…
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: