Por um lado, O Som do Silêncio é um filme absolutamente angustiante que, empregando os recursos de linguagem cinematográfica que têm à disposição, mergulha o espectador em uma realidade na qual a ausência de som e a perda gradual da audição se apresentam como motivos de horror puro (o que, confesso, foi o suficiente para me deixar agoniado com menos de 15 minutos de projeção). Ao mesmo tempo, porém, O Som do Silêncio é também uma obra surpreendentemente empática e tolerante em relação à causa dos deficientes auditivos, dedicando suas mais de duas horas a acompanhar um protagonista que, apavorado por ter perdido a audição, entra em uma jornada que o permite não só compreender melhor o universo dos surdos, mas também aceitar sua própria condição. Um belo exercício de empatia direcionado a um grupo excluído pela sociedade, portanto.
Primeira ficção dirigida por Darius Marder (que tem mais experiência como montador e cujo único longa anterior fora o documentário Loot, de 2008), O Som do Silêncio gira em torno de Ruben Stone, um baterista que ganha a vida apresentando-se ao lado de sua namorada, Lou, e sendo frequentemente submetido a um altíssimo volume sonoro (que eu classificaria, em bom português, como “esporrento” mesmo). Embora habituado a receber esta carga massiva de som durante seus shows, chega um dia em que Ruben se vê surpreso – da pior forma possível – ao acordar e se descobrir capaz de ouvir somente 20% do que conseguia escutar antes, identificando apenas um interminável ruído abafado no espaço que antes era preenchido por sons, vozes e palavras bem captadas. Assim, percebendo que não tem dinheiro para pagar por um implante cerebral que o permita (ao menos, em teoria) voltar a ouvir como antes, Ruben decide se isolar em um retiro dedicado a indivíduos com deficiência auditiva e que é comandado pelo veterano Joe, que perdeu a audição durante a Guerra do Vietnã.
Demonstrando controle quase total ao estabelecer a dinâmica de seu universo (ênfase no “quase”), Darius Marder se mostra inteligente logo na sequência que abre o filme, que, retratando um dos shows de Rubin, vai na contramão do que a maioria dos diretores faria ao filmar uma cena como esta: em vez de se preocupar em fazer o público sentir como se presenciasse um show ao vivo (como fazem Nasce uma Estrela e Bohemian Rhapsody, por exemplo), Marder prefere se concentrar apenas nos detalhes que interessam ao próprio Rubin (e, por consequência, ao espectador), como a intensidade empregada ao tocar a bateria, os sons altos que dela saem, o vocal de sua namorada, os gritos da plateia, etc. Esta estratégia, aliás, se mantém ao longo de boa parte da narrativa, sendo notável como a mixagem faz questão de enfatizar não só os barulhos altos (e mais óbvios), mas principalmente os sons sutis que saem dos objetos usados por Ruben no dia a dia (máquina de café, toques na bateria, etc) – uma ênfase que se torna ainda mais importante ao ser contraposta ao abafado que depois toma conta de sua audição e que dói (propositalmente) nos ouvidos do espectador, fazendo este sentir na pele o drama retratado na tela.
Neste sentido, O Som do Silêncio se estabelece não apenas como uma experiência sensorial assustadora, mas – o mais importante – como um comentário acerca de como os surdos são excluídos por uma sociedade que nem se dá ao trabalho de tentar enxergá-los, já que, ao mergulhar o espectador no drama vivido por um destes, o filme automaticamente o leva a perceber (mesmo que de forma distanciada) as dificuldades que um deficiente auditivo é obrigado a encarar em seu cotidiano pelo simples fato de sê-lo. Por outro lado, Marder não se preocupa muito em estabelecer uma lógica na maneira com que nós, espectadores, “ouvimos” a surdez de Ruben, alternando entre o abafado e a mixagem convencional de forma arbitrária (afinal, fazer um filme inteiro com som abafado seria ousado até demais, não é?). Como se não bastasse, a imaginação do cineasta ao usar a linguagem audiovisual para contar sua história desaparece durante boa parte do segundo ato, que, composto basicamente por reuniões entre os membros da comunidade de Joe, se revela esteticamente burocrático ao apenas ilustrar estas conversas.
Em compensação, se há algo que O Som do Silêncio mantém consistente do início ao fim, é sua impecável escalação de elenco: tornando verossímil o desespero de Rubin ao descobrir que um de seus sentidos mais úteis sumiu de uma hora para a outra, Riz Ahmed adota a inquietação como peça-chave de sua composição, sugerindo não apenas pânico (e recuperação de uma antiga dependência química), mas também uma pré-disposição a perder o controle assim que entrasse em uma situação fora de sua zona de conforto. E, se Olivia Cooke encarna Lou como uma figura cuja preocupação por Rubin soa sempre como fruto de uma cumplicidade genuína, Paul Raci se destaca ao transformar Joe em um mentor cujos princípios não ofuscam sua empatia – e é brilhante, em particular, que o ator retrate a reação do personagem diante de certa atitude de Ruben (vocês a reconhecerão) não com desprezo, mas com compaixão (mesmo que esta seja barrada – de novo – por seus princípios).
Encontrando espaço para apontar também as fragilidades do sistema de saúde privado dos Estados Unidos (que, absurdamente caro, obriga o paciente a pagar uma fortuna que não tem em vez de proporcionar a ele um tratamento eficaz; algo que deveria ser um direito básico), O Som do Silêncio ainda termina com um plano que faz jus a seu título (ao menos, em português) e à filosofia inclusiva do projeto como um todo. Afinal, o que Ruben aprende é que a surdez não é necessariamente uma deficiência; apenas um estilo de vida diferente – e que, claro, merece ser compreendido e incluído pela sociedade à sua volta.